23 Setembro 2020
Parece muito curioso à primeira vista que um grande acordo de paz para o Oriente Médio tenha sido assinado na Casa Branca na semana passada – com nada menos que uma referência explicitamente religiosa no título – e, até agora, o Vaticano não teve absolutamente nada a dizer sobre isso.
O comentário é de John L. Allen, publicado por Crux, 22-09-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Os “Acordos de Abraão” (Abraham Accords), cujo cerne é a normalização das relações entre os Emirados Árabes Unidos e Israel e a suspensão dos planos israelenses de anexar partes da Cisjordânia, foram anunciados em agosto e assinados em Washington em 15 de setembro. Simultaneamente, Israel e o Bahrein também anunciaram planos para lançar relações diplomáticas plenas.
Mapa do Oriente Médo. (Fonte: Wikicommons)
O papa Francisco nem qualquer um de seus assessores diplomáticos fizeram comentários sobre os acordos. Apenas o Vatican News, o meio oficial de comunicação do Vaticano, relatou o que foi exposto acima. O presidente do Comitê de Justiça e Paz Internacional dos Bispos dos EUA disse que os acordos poderiam ser um “passo para a paz”, mas publicamente ninguém no Vaticano assumiu nem mesmo essa postura cautelosa.
À primeira vista, isso é intrigante. O Oriente Médio tem sido a principal preocupação diplomática do Vaticano, por pelo menos três razões: geopoliticamente, a divisão Israel/Palestina é a “mãe de todos os conflitos” e evitar tensões mais amplas na região é a chave para a segurança global; religiosamente, a Terra Santa é o berço do Cristianismo; e pastoralmente, há uma pequena, mas importante minoria cristã no Oriente Médio que tende a ser especialmente vulnerável quando o conflito irromper.
Por essas razões, o Vaticano apoiou publicamente os Acordos de Camp David de 1978 e de Oslo de 1993, em ambos os casos aplaudindo os resultados e com os Papas recebendo os chefes de estado envolvidos antes ou depois de os Acordos serem assinados.
Além disso, há uma razão especial para o papa Francisco estar interessado em qualquer coisa que envolva os Emirados Árabes Unidos – o país apelidado de “Vaticano do mundo muçulmano sunita” –, já que foi para lá que ele viajou em fevereiro de 2019 como parte de sua estratégia de divulgação ao mundo islâmico, e foi onde ele assinou o tão elogiado “Documento sobre a fraternidade humana” junto com Ahmed al-Tayeb, o Grande Sheik de Al-Azhar.
Espera-se que esse documento forneça algumas das bases para a próxima carta encíclica de Francisco sobre a fraternidade humana, intitulada Fratelli Tutti, que será assinada em Assis, no dia 03 de outubro. Especialmente nesse contexto, o silêncio do Vaticano sobre os Acordos de Abraão e a volta dos Emirados Árabes Unidos aos holofotes requerem explicação.
Presumivelmente, está em alguma versão de dois pontos básicos.
Primeiro, é a temporada de eleições nos EUA. A partir de hoje, faltam 41 dias para a eleição em 3 de novembro, e apenas uma semana antes do primeiro debate entre o presidente Donald Trump e o opositor democrático Joe Biden. Sem dúvida, Trump usará os acordos como parte do argumento para sua reeleição, e qualquer coisa que o Vaticano possa dizer, seja elogiando-os ou criticando-os, imediatamente seria visto como um movimento político.
O Vaticano abomina ser utilizado em debates partidários domésticos, faz de tudo para evitar isso, e é uma ideia especial fixada pelo papa Francisco. São oito anos recusando fazer uma viagem de visita à Argentina, o que, de acordo com seus amigos e aliados, se dá pela preocupação de ser visto como beneficiador de uma ou outra facção política do país.
Certo, Francisco não foi muito discreto para se posicionar contra o então candidato Trump em fevereiro de 2016, dizendo que qualquer um que quisesse construir um muro para manter as pessoas fora do país “não é cristão”. No entanto, ele tem sido mais contido desde então, evitando quase tudo que pudesse ser visto como um comentário diretamente crítico sobre o presidente americano, apesar das diferenças políticas claras entre os dois líderes.
Além disso, este acordo provavelmente não apenas beneficia Trump politicamente, mas também ajuda Netanyahu em Israel, e nenhum dos dois é exatamente o chefe de governo dos sonhos do Vaticano. O Vaticano não pode se opor a qualquer medida que pareça promover a paz, mas também não precisa sair de seu caminho para elogiar pessoas sobre as quais tem reservas em várias frentes.
Em segundo lugar, a Santa Sé definitivamente quer paz no Oriente Médio, mas este não é realmente o seu plano para isso.
O Vaticano é um antigo defensor da solução de dois estados, o que significa soberania para os palestinos, segurança para Israel e um status internacional especial para locais sagrados. De acordo com muitos observadores, os Acordos de Abraão efetivamente marginalizam os palestinos ao firmar acordos separados com Estados árabes, dos quais os palestinos não fazem parte. No mínimo, alguns argumentariam que os acordos na verdade recompensam Israel por sua intransigência, e talvez marquem um ponto de partida em relação à soberania dos palestinos como condição sine qua non de uma paz duradoura.
Como um antigo defensor da justiça para os palestinos, o Vaticano não pode endossar qualquer medida que pareça torná-la menos possível, mesmo que também não possa se opor a dois inimigos de longa data chegarem a um acordo ao invocar o arquétipo bíblico de Abraão.
Como nota de rodapé, a cerimônia de assinatura dos acordos ocorreu três dias antes de o secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, repreender publicamente o Papa e o Vaticano por não fazerem pressão contra a China por violações da liberdade religiosa, então esse não é o motivo pelo qual o Vaticano permaneceu em silêncio. No entanto, daqui para frente, pode fornecer uma razão adicional pela qual Roma não se sente inclinada a sair de seu caminho para fazer favores a Pompeo.
Como diz o velho ditado: “Se você não sabe o que dizer, fique quieto e você não pode estar errado”. Agora, o Vaticano parece estar levando essa sabedoria a sério.
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O silêncio do Vaticano sobre os “Acordos de Abraão” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU